Textos do Mauricio

Choque de segurança

Por MAURICIO BELTRAMELLI

No calor satânico que faz por esses dias na Europa, ontem resolvi me deixar ficar em uma praça pública aqui em Mantova, cidade onde estou morando. À beira do lago que circunda a cidade, o lugar estava absolutamente escuro e ermo. Só tinha eu, em companhia da cerveja que estava tomando.

Chegado há poucos 9 meses do Brasil, a minha mente ainda é, digamos, brasileira em relação a muitos pontos de vista, principalmente no tocante a segurança. Eu e a minha cerveja, então, ficamos naquele parque sombrio até umas 2 da manhã, ambos tentando fingir despreocupação. Foram horas de apreensão, durante as quais cada rumor vindo do arvoredo atrás de mim se transformavam na certeza de um latrocínio ou, no mínimo, um sequestro relâmpago.

Sabe o que me aconteceu de pior? A cerveja esquentou. Fora isso, nada. Niente. Nulla.

Corta pra mudança de cenário.

Eu e a Fabi, após ter comprado nosso primeiro carro aqui na Itália, no escritório do agente de seguros. Conversa daqui, papeia de lá, ele apresenta as opções de cobertura e em um dado momento a gente sentiu falta, em todas elas, do seguro contra furto ou roubo. O rapaz nos olha meio enviesado, não entendeu nada. Com certeza erramos na flexão do verbo em italiano. Não era isso. “pelo menos nessa região da Itália ninguém me pede esse tipo de cobertura”, disse ele, após dez minutos de constrangedores olhares trocados de parte a parte. “Estou nesse negócio há oito anos, e nunca ouvi falar de carro roubado por aqui”, completou ele, diante da nossa cara de otário.

De fato, com a casca grossa da “brasilidade” que nos habituamos a criar vivendo tantos anos no Brasil, ficamos estarrecidos com algumas coisas tão simples e banais que as pessoas fazem por aqui, mas que pra nós, se feitas no Brasil, acarretariam sérios riscos. Creiam-me: somente a sensação de poder andar despreocupadamente na rua deserta, na hora que você quiser, acompanhado ou não, sendo homem ou mulher, portando ou não dinheiro, celular, câmera fotográfica ou o que quer que seja, tudo isso sem o menor risco de ter uma faca ou uma pistola encostada na barriga ou na cabeça, já justifica a mudança de país.

Mas outros pequenos aspectos também fazem parte dessa conta. Janelas abertas nas casas são a regra nos dias quentes, inclusive nos carros. Nos jornais, vira manchete (página inteira!) o caso em que um ladrão tentou invadir uma casa pra roubar um varal.

“Mas vá fazer isso nos arrabaldes de Paris, Londres ou Roma”, dirão alguns, com razão. De fato, em certas zonas de algumas grandes cidades, há sim banditismo. Não existe o paraíso! Mas entre o inferno daqui e o daí, há um abismo a nos distanciar. Aqui na Europa, a chance de alguém te matar para te roubar é ínfima. Quase não há latrocínios, e muito pouco bandido anda com faca na mão. O que se vê nesses lugares é o furto, algo parecido com o que nós, no Brasil, chamamos de trombadinha.

Voltando à “brasilidade”, a pergunta é cabível: porque isso nos deixa tão surpresos? Não tinha que ser assim?

Desde que ponto da nossa história a gente começou a achar normal viver em condomínio fechado, com cerca elétrica no muro? Quando foi que a gente se acostumou a sair de casa com o vidro do carro fechado?

O que dizer de quem acha lindo e chique ter segurança armado à sua disposição? Que considera natural que as suas visitas tenham que exibir RG e sejam fichadas na portaria do seu prédio?

Quando a gente começou a tremer de medo a cada barulho estranho em casa durante a noite, ou achar normal ter 25 trancas na porta que dá pra rua?

Quando a gente começou a se conformar em pagar caro em um seguro contra roubo, seja do carro, da casa ou até do celular? Em que momento a gente deu as primeiras graças quando o ladrão que nos roubou “pelo menos não fez nada” com a gente?

Será mesmo que “não dá pra comparar”?.

Na minha opinião, tem que dar! Porque se a gente não puder se espelhar pelo melhor exemplo, vamos nos espelhar em qual deles? Pois se o nosso dever, como cidadãos e pagadores de altíssimos impostos, é justamente cobrar pela melhor segurança que a gente pode ter, sem se conformar com as situações absurdas que eu colei aí em cima! A gente não pode deixar de acreditar que nunca vamos nos equiparar ao que há de melhor!

“É fácil ficar de fora e apontar o dedo pro lado de dentro”, certo? Sim, mas é justamente morando aqui fora que a gente percebe os absurdos com os quais nos conformamos aí dentro. E não é porque estou fora que vou deixar de querer o bem do Brasil. Afinal, mesmo que eu resolva morar o resto da vida no exterior, vou continuar a ter aí família, amigos e um mundaréu de gente que amo. Vou continuar a ser brasileiro, e o Brasil será sempre o lugar onde eu nasci. E que, por tudo isso, eu quero demais que se conserte!

Mas, sendo honesto, mesmo depois de tão pouco tempo aqui fora, tenho um certo receio de voltar, e me deparar com o sentimento geral de que tudo o que acontece de errado é normal.

Não! Nunca podemos nos conformar em ser “assim mesmo”!

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